sábado, 9 de janeiro de 2010

O sapateiro.

Estava chovendo. Aliás, não, não estava chovendo. Estava frio.

Ela andava sozinha para consertar uma burrice que havia feito: pegar algo emprestado('quem empresta, nem pra si presta'), e, ainda por cima, rasgar o objeto. Uma mochila.

No caminho para o conserto, algo inusitado aconteceu: a sola da bota que usava descolou. 'Puta que pariu', pensou. Depois, pensou de novo, melhor, algo quase sublime:'Isso é um teste. Só tenho que manter a calma nas adversidades'.

Manteve a calma. Subiu a calçada. Pediu informação. Sim, havia um sapateiro logo ali, que, além da bota, poderia consertar mochilas velhas, emprestadas e rasgadas. Na rua da lanchonete. Não, na rua da farmácia. Não, logo mais ali à esquerda. Ande com o solado da bota rasgado mesmo, está chegando perto.

E o lá chegou. Beco pequeno. Parecia de filme, luz amarelada, rádio de pilha, amontoados de calçados por remendar, avental melado de graxa, cheiro de cola de sapateiro. Deu vontade de fotografar. Tudo que havia de típico, estava havendo ali.

O que quer, moça? Preciso que conserte a bota, disse, mostrando. E a mochila também. Enquanto o sapateiro consertava, conversava, indo de encontro a informação que haviam dado de que não era simpático. Porque é bom se surpreender até mesmo sobre o humor de sapateiros, queridos sapateiros. Falou dele. Da guerra. Do ofício aprendido há 65 anos. Trabalhava desde os 8. Trabalhou em lavoura também antes. E sorria. Sorria e pegava na cola, sorria e pregava as coisas, sorria e deslisava o dedo sobre os objetos que cuidava, um deslizar lento e preciso, coisa de gente que sabe o que faz.

Cobrou pouco. Disse que ela era uma querida simpática.

Há beleza em sapateiros, colas, idade avançada, deslizar de dedos, em ofício artesanal aprendido com outra geração.

Há beleza em perceber tudo isso.

Um comentário:

  1. Belíssimo conto, amiga! Imprevistos também podem se transformar em grandes surpresas...

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